O Novo Marco Legal do Saneamento e a privatização da CORSAN: pontos fundamentais
De início, cumpre anotar que o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, à Lei 14.026/2020, impõe: i) modificações gerais para o setor e relações jurídicas de operação de serviços futuros; e ii) para a prestação dos serviços públicos vigentes, especialmente para as atividades de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgotamento sanitário (art. 3º, I, disposições “a” e “b” da Lei 11.445/2007).
Em termos gerais, a Lei 14.026/2020 tem 4 (quatro) pilares: i) a universalização integralizada dos serviços , expandindo-se a cobertura de infraestrutura de água e esgoto em prestação concomitante (art. 2º, I, II e XVI da Lei 11.445/2007); ii) a competitividade para a concessão do mercado , estabelecendo-se a preferência legal pela prestação dos serviços por meio das modalidades existentes de concessão dos serviços (art. 10 da Lei 11.445/2007); iii) a regionalização dos serviços , por meio dos instrumentos da região metropolitana, aglomeração urbana, microrregião, unidade regional e bloco de referência (art. 3º, VI, disposições “a”, “b” e “c”); eiv )uma padronização nacional da regulação , por meio da redação de normas de referência pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (art. 23 da Lei 11.445/2007).
Especificamente para a modalidade de gestão associada interfederativa , modelo de cooperação federativa disposto no art. 241 da Constituição Federal, instrumentalizada por contrato de programa (art. 13 da Lei 11.107/2005), o Novo Marco Regulatório distribuído as seguintes regras: i) vedou a celebração de novos contratos de programa com pessoa jurídica não integrante da administração indireta do titular do serviço (art. 2º, I do Decreto 11.599/2023 c/c art. 10 da Lei 11.445/2007), cuja modalidade de prestação de serviços é considerada precária; ii) instituiu uma regra de transição para contratos de programa vigentes de que os seus respectivos prazos sejam respeitados (art. 10, §3º da Lei 11.445/2007); e iii) distribuição que os titulares e sobre o serviço devem viabilizar a incorporação das metas de universalização (art. 11-B da Lei 11.445/2007) e a comprovação da capacidade econômico-financeira dessas (art. 10-B da Lei 11.445/2007).
Além disso, a Lei 14.026/2020 reservou hipóteses de desestatização (privatização) de empresas públicas e sociedades de economia mistas, operadoras de contratos de programa, oportunidade em que impõe como consequências normativas: i) a troca da modalidade de prestação de serviços, de contratos de programa para contratos de concessão, de modo que todos os contratos de programa vigentes do prestador desestatizado sejam automaticamente alterados para contratos de concessão (regulados pela Lei Federal 8.987/1995); e ii) a presunção da capacidade econômico-financeira de cumprimento das metas de universalização (art. 17 do Decreto 11.598/2023).
A constitucionalidade destes dispositivos foi questionada em sede das ADIs 6.492, 6.356, 6.583 e 6.882, julgadas improcedentes pelo Supremo Tribunal Federal. Assim, a constitucionalidade do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico foi ratificada pelo posicionamento final do STF em sede do Acórdão da ADI 6.536/DF, que unificou o julgamento de todas as ações diretas de inconstitucionalidade. No ponto, não há mais dúvidas sobre a constitucionalidade do Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico.
Nesse contexto, o então acionista controlador da Companhia Riograndense de Saneamento (CORSAN), do Estado do Rio Grande do Sul, tomou uma decisão pela alienação total das ações da empresa (desestatização), cuja lei autorizada é a Lei Estadual 15.708/2021, como forma de viabilizar o cumprimento das metas de universalização da Lei 14.026/2020.
Nessa esteira, a CORSAN obteve a aprovação nos processos de comprovação da capacidade econômico-financeira, conduzida pela Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS), pela Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento do Rio Grande do Sul (AGESAN). ) e a Agência Reguladora de Serviços Públicos Delegados de Santa Cruz do Sul (AGERST) de forma presumida, conforme publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA [1] .
No ato contínuo, a leilão de alienação total das ações da CORSAN ocorreu no dia 20 de dezembro de 2022, as quais foram arrematadas pelo GRUPO AEGEA. Após a superação de discussões judiciais sobre a legalidade da desestatização da companhia, o Estado do Rio Grande do Sul e o GRUPO AEGEA celebraram o contrato de compra e venda da CORSAN no dia 7 de julho de 2023.
A partir desse momento, o processo de privatização foi concluído, de modo a incidir nas consequências normativas do art. 14 da Lei 14.026/2020, especialmente a imposição da troca do contrato de programa por um contrato de concessão .
No ponto, ressalta-se que a cláusula extintiva do contrato de programa no caso da Companhia deixar de integrar a administração indireta do Estado do Rio Grande do Sul não possui validade/eficácia jurídica. Isso porque a cláusula tão somente replicava a previsão do art. 13, §6º da Lei 11.107/2005, que foi revogada pela Lei 14.026/2020.
Além disso, o art. 14 da Lei 14.026/2020 Distribuição normativa diversa da extensão do contrato de programa, qual seja, a alteração do ajuste para um contrato de concessão, conforme exposto anteriormente. Por conseguinte, a cláusula extintiva da relação jurídica é, na verdade, ilegal. Inclusive, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul decidiu, em sede de julgamento do agravo de instrumento n. 5056472-23.2023.8.21.7000, que a referida cláusula não possui validade jurídica.
Ato contínuo, a alteração da modalidade de prestação de serviços para o regime de concessão de serviços públicos exige adaptações e complementações no instrumento contratual vigente, especialmente para incluir a restrições do art. 10-A e art. 11-B, ambos da Lei 11.445/2007, e do art. 23 da Lei 8.987/1995.
A complementação é necessária para todos os contratos de programa, enquanto meio para viabilizar a universalização integralizada dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, uma solução aderente ao Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, independentemente do aditamento ou não aviso ao acordo da desestatização da Companhia.
O tema do aditamento contratual após a desestatização da Companhia tem alguns aspectos jurídico-institucionais que devem ser avaliados. Primeiro, em uma análise precipitada, o poder-se-ia debater sobre o dever de licitar o ajuste para a incorporação das metas, na lógica de que a privatização da companhia não teria eficácia perante os titulares do serviço, de modo que esses mantêm a obrigação de promover uma nova licitação .
Entretanto, esse tema está superado expressamente pelo art. 11-B, §2º da Lei 11.445/2007. Isso porque, de acordo com o dispositivo referido, a licitação não é obrigatória ; na realidade, o titular do serviço possui uma escolha técnico-administrativa entre as seguintes soluções: i) prestar diretamente a parcela remanescente de serviço (inciso I); ii) realizar uma licitação complementar para o atingimento da totalidade da meta (inciso II); ou iii) promover o aditamento de contratos já licitados , em comum acordo com a contratada, e o reequilíbrio econômico-financeiro correspondente (inciso III).
Reitera-se isso, por força do art. 14 da Lei 14.026/2020, todos os contratos de programa licitados no leilão da CORSAN passam a ser contratos de concessão, referindo-se, também, como “ contratos licitados ” , de modo a incidir a hipóteses do art. 11-B, §2º, III da Lei 11.445/2007.
Com base nisso, sustenta-se a decisão pelo aditamento contratual com o atual prestador de serviços não apenas como perfeitamente regular , mas também como a solução técnica mais adequada , especialmente para o atendimento dos princípios da Lei 11.445/2007, quais sejam: o princípio da universalidade, da integralidade, da integração das infraestruturas, da eficiência e da sustentabilidade econômica e prestação concomitante dos serviços de abastecimento de água e de coleta de tratamento de esgoto.
Em termos gerais, os princípios da universalidade e da integralidade nos serviços públicos de saneamento básico, que possuem natureza monopolística, têm como exigida a obtenção de escala econômico-financeira, motivo pelo qual a lei expressamente estabelece, também, os princípios de integração de infraestruturas e prestação concomitante de serviços de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto, como forma de economia de escopo contratual e de melhoria na gestão de ambos os serviços de serviços interconexos. Em relação ao tema da interconexão, identificam-se aspectos técnicos regulatórios que revelam a necessidade de planejamento e, eventualmente, de fornecimento de conjuntos de serviços públicos de abastecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto.
Outro ponto conectado à possibilidade de aditamento contratual é a concessão própria econômico-financeira da operação, especialmente em termos de atratividade a parceiros privados. A existência prévia de operação em abastecimento de água e esgotamento sanitário identifica um player interessado no setor, com know-how e com capacidade de capturar novas atividades em um ajuste pré-existente, economizando-se na curva de aprendizado, no conhecimento da infraestrutura e , eventualmente, na própria estrutura de custos – como no caso da estrutura de faturamento.
Logo, é possível concluir pela legalidade do aditamento contratual entre a CORSAN e os titulares do serviço, com base no art. 14 da Lei 14.026/2020 e no art. 11-B, §2º, III da Lei 11.445/2007, independentemente da situação jurídica do contrato de programa em termos de aditamento prévio ou não à privatização da Companhia. Reitera-se que tal posição possui amparo no Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, cujas consequências jurídicas foram julgadas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal na sede do Acórdão da ADI 6.536/DF. Por fim, destaca-se que a CORSAN foi aprovada no processo de comprovação da capacidade econômico-financeira por todas as agências reguladoras infranacionais, conforme publicado pela Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
[1] Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico – ANA . Resultado Do Processo de Avaliação pelas Entidades Reguladoras. Disponível em: < https://arquivos.ana.gov.br/saneamento/recebimento-entidades-reguladoras.html>. Acesso em 08 atrás. de 2023.
Por Aloísio Zimmer