
Aprovada a Desestatização da CORSAN: será este o melhor modelo?
Na tarde de hoje, dia 31 de agosto, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul votou o Projeto de Lei 211/2021, projeto do Poder Executivo que busca autorização para alienar, total ou parcialmente, o controle acionário da Companhia Riograndense de Saneamento.
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Conforme o parágrafo único do art. 1º da Lei Estadual 15.708/2021, a desestatização poderá ser executada mediante alienação de participação societária, inclusive de controle acionário, abertura ou aumento de capital, com renúncia ou cessão, total ou parcial, de direitos de subscrição, mediante pregão em bolsa de valores ou oferta pública de distribuição de valores mobiliários nos mercados primário ou secundário, inclusive por meio de IPO (oferta pública inicial), observadas as normas expedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Após deliberação, por 33 votos, a Assembleia Legislativa aprovou o PL e a desestatização da CORSAN foi autorizada pela maioria dos deputados e deputadas estaduais.
Com efeito, o Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, inaugurado pela Lei 14.026/2020, trouxe novas diretrizes para a prestação de serviços no setor, especialmente para água e esgoto. O principal aspecto apontado é a necessidade de atendimento das metas de universalização até 31 de dezembro de 2033 (art. 11-B da Lei 11.445/2007), na porcentagem de 90% da população atendida em coleta de esgoto e de 99% de cobertura de rede de abastecimento de água tratada.
Ocorre que, no modelo atual de prestação de serviços, identifica-se a i) insuficiência da cobertura de serviços; e ii) déficit de investimentos necessários à universalização dos serviços. Segundo dados do Sistema Nacional de Informações de Saneamento Básico (SNIS), em 2017, havia déficit de 40,8 e 103,2 milhões de brasileiros sem acesso às infraestruturas de abastecimento de água e esgotamento sanitário, respectivamente. Conforme aponta estudo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, para o quinquênio de 2013-2015, esperava-se a injeção de R$ 163 bilhões na expansão de serviços e de infraestrutura no setor; contudo, a quantia realmente investida no período chegou a menos da metade do projetado (R$ 63 bilhões – 38% do esperado).
As metas de universalização são resultado do PLANSAB – Plano Nacional de Saneamento Básico –, realizado em 2012, que previa 3 cenários. No primeiro deles, falava-se em protagonismo do setor público sobre o privado caso o Brasil mantivesse índices de crescimento de 5,5% do Produto Interno Bruto1. No cenário 2, em que se revia menores índices de crescimento – em torno de 4,4% do PIB entre 2011 a 2020 e de 4,5% entre 2020 a 2030 –, mesmo que de forma mais discreta, admitia-se maior atuação da iniciativa privada e gradual redução do papel do Estado nos investimentos essenciais à prestação adequada dos serviços2. No cenário 3, referia-se a possibilidade de crescimento menor do que de 4,4%, mas era considerada hipótese tão remota que sequer foi feito um planejamento das diretrizes de atuação3. Fato é que as projeções de cenário 1 e 2 não se concretizaram, e a realidade se mostrou muito mais difícil do que o esperado – ou seja, mesmo o cenário 3 se tornou um cálculo otimista se comparado com a realidade dos últimos anos e do primeiro trimestre de 2021. É importante reiterar: todas as análises ficaram distantes dos patamares revelados para 2020/2021.
Em termos estaduais, o investimento médio, nos anos de 2014 a 2018, em esgotamento sanitário no Estado do Rio Grande do Sul ficou muito aquém do necessário para a universalização no prazo de 15 anos, segundo dados do Relatório do Instituto Trata Brasil, concluído em novembro de 20204.
O resultado de toda essa conjuntura deficitária é a necessidade de angariar investimentos do setor privado para o adequado cumprimento das metas de universalização; daí a necessidade do PL 211/2021, aprovado hoje pela maioria dos deputados e deputadas estaduais.
Isso porque o modelo atual, de prestação dos serviços por meio das companhias estaduais ou das autarquias municipais, não corresponderá aos anseios projetados pela inaugurada Lei Federal 14.026/2020. A propósito, o pedido de socorro aos recursos privados decorre da constatação de que, nos últimos anos, os investimentos em infraestrutura, apesar da participação quase inexpressiva desses players no setor, vêm da iniciativa privada5.
Nessa esteira, consoante estudo da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, a universalização dos serviços custará mais do que o dobro dos valores apontados pelo PLANSAB, de modo que “Os setores público e privado precisarão trabalhar em conjunto para investir mais de R$ 750 bilhões em menos de 15 anos"6. Logo, no atual ritmo de investimentos, a pretendida universalização em todo o brasil ocorreria apenas no ano de 2055.
Por isso, a resposta da Lei Federal 14.026/2020 foi um verdadeiro incentivo à atração do setor privado, o que, em grande medida, significa a transição do atual modelo de prestação dos serviços (público, por meio de companhias estaduais e autarquias municipais) para os contratos de concessão precedidos de licitação, com operadores privados. Tal linha de raciocínio pode ser extraída de vários dispositivos do referido diploma legal, como por exemplo: i) da vedação de formalização de novos contratos de programa com pessoas jurídicas de outro ente da federação que não seja o titular do serviço, tendo-se como modelo preferencial a de celebração de contratos de concessão precedidos de licitação, na forma do art. 10 da Lei 11.445/2007; ii) a anulabilidade dos contratos de programa que não demonstrarem a viabilidade econômico-financeira para concretização das metas, consoante art. 11, inciso II da Lei 11.445/2007; iii) a facilitação do procedimento de desestatização das companhias estaduais, com previsibilidade de substituição do contrato de programa por um contrato de concessão na transferência do controle acionário da empresa estatal, conforme o disposto pelo art. 14 da Lei Federal 14.026/2020.
O cenário, portanto, é de risco às companhias estaduais, sobretudo de perda (ou diminuição significativa) de sua base de contratos e de insuficiência de recursos financeiros para a prestação dos serviços com a qualidade que deles se espera. Isso porque, devido ao art. 10 da Lei Federal 11.445/2007, impossibilita-se a dilatação do prazo de contrato de programa como forma de obtenção de contraprestação pelos investimentos que deverão ser realizados. A única forma de contraprestação no atual cenário, e reequilíbrio econômico-financeiro dos contratos de programa, é o aumento de subsídios e subvenções ou aumento de tarifas – o que parece inviável neste momento. Todavia, este cenário pode mudar com a desestatização da Companhia, agora aprovada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul.
A previsão do art. 14 da Lei Federal 14.026/2020, qual seja, de transferência do controle acionário da Companhia estadual (processo de desestatização), permite a substituição do contrato de programa por um contrato de concessão, com alteração de prazo e de objeto do instrumento contratual. Com a incidência desse dispositivo, traz-se maior segurança jurídica e orçamentária à operação (e sobrevivência) das Companhias.
Aliás, segundo Fato Relevante divulgado pela CORSAN, logo após a aprovação do PL, o governo poderá ceder até 10% do seu controle acionário aos municípios atendidos pela CORSAN que venham a a firmar, em até 90 dias após a entrada em vigor da lei estadual, aditivo contratual com a extensão do prazo de concessões até 2062:
É necessário, ainda, ressaltar que a operação estatal ou privada dos serviços é cíclica, ou seja, usualmente há modificação do modelo de prestação dos serviços com base na conjuntura macroeconômica. Em outras palavras: não existe modelo ideal. Existe modelo adequado às necessidades circunstanciais.
Ressalta-se que os motivos de concessão dos serviços, como no atual contexto, normalmente estão atrelados às necessidades de angariar investimento privado em tempos de fragilidade fiscal. Após tal cenário, caso assim seja julgado necessário, é possível que haja uma nova reestatização dos serviços. Trata-se, novamente, de uma escolha legítima de vontade política de um determinado (e transitório) governo. Há, na decisão político-administrativa, forte correlação entre os dilemas conjunturais do setor e a capacidade de investimento do Estado, observando-se, como flutuação natural das coisas, ciclos de concessão, de privatização e, até mesmo, de reestatização do setor, sem que isso implique na eleição de um único modelo como mais adequado para todas as circunstâncias.
Em conclusão, é possível afirmar que a delegação dos serviços ao setor privado se apresenta como uma escolha possível e, para certas circunstâncias, bastante desejável, sobretudo no caso da necessária ampliação de investimentos em infraestrutura. No contexto brasileiro, foi esta a modalidade eleita pelo Novo Marco Regulatório do Saneamento Básico, notadamente pelo Congresso Nacional quando da aprovação da Lei Federal 14.026/2020, que deverá ser observada por todos os entes federados.
1 HELLER, Léo. Plano Nacional de Saneamento Básico: PLANSAB, Proposta de Plano, Ministério das Cidades, Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, Brasília, 2011, p. 92.
2 Ibidem, p. 96.
3 Ibidem, p. 99.
4 INSTITUTO TRATA BRASIL. Cenário para Investimento em Saneamento no Brasil após a aprovação do Novo Marco Legal. Disponível em <http://www.tratabrasil.org.br/component/estudos/itb/cenario-para-investimentos-em-saneamento-no-brasil-apos-a-aprovacao-do-novo-marco-legal>. Acesso ago 2021.
5 Trata-se de um setor altamente monopolizado, onde as empresas estaduais possuem forte predomínio e a iniciativa privada está presente em apenas 6% dos municípios, apesar de representar mais de 20% dos investimentos realizados no setor.” BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei n. 4.612, de 08 de julho de 2019. Brasília. Disponível em: <https://www.camara.leg.br>. Acesso em ago 2021.
6 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DAS CONCESSIONÁRIAS PRIVADAS – ABCON. Quanto Custa Universalizar o Saneamento no Brasil? 2020. Disponível em: <https://assets.kpmg/content/dam/kpmg/br/pdf/2020/07/kpmg-quanto-custa-universalizar-o-saneamento-no-brasil.pdf>. Acesso em ago 2021.
Por Aloísio Zimmer, Ana Paula Mella Vicari e Gabriel Büttenberder Galetto.